"Louvado seja aquele que correndo por entre os escombros da guerra da política e das desgraças públicas preserva a sua honra intacta" (Simon Bolívar)

Artigos e Leis


Concepções sobre criminalidade e modelos de policiamento
Concepts on criminality and policing models


O crescimento da criminalidade violenta nas duas últimas décadas, principalmente na América Latina, é um fato incontestável. Nossas taxas são duas vezes maiores que a média mundial e, no continente, Brasil, México e Colômbia são os países mais violentos. Constata-se também que aumentaram a arbitrariedade, o abuso de força e a corrupção por parte dos policiais, bem como a sensação de insegurança e de temor ao crime entre a população2.
No Brasil, a gravidade, as dimensões e a natureza do problema da criminalidade, da violência e da segurança pública suscitam uma série de discussões, muitas vezes demasiadamente apaixonadas, entre as quais salientamos a da necessidade de reforma institucional do sistema policial, estando na pauta do dia a defesa, freqüentemente demagógica por parte de alguns políticos, da unificação das polícias.
Duas outras facetas importantes do problema são a desinformação e a mistificação do fenômeno em si e, principalmente, da personalidade dos criminosos, o que só faz aumentar o temor do crime, comprometendo nossa capacidade de enfrentá-lo mais racional e eficientemente. Por exemplo, os que defendem que é preciso armar a polícia partem do pressuposto de que os criminosos são muito bem equipados, desconhecendo que a esmagadora maioria dos crimes é praticada com auxílio de armas muito simples.
Beato Filho (s/d) mostra que os sistemas de informações e dados estatísticos sobre as ocorrências e sua localização espacial (geoprocessamento) são indispensáveis para identificar padrões de criminalidade, que, por sua vez, permitem uma avaliação mais adequada das percepções sociais (medo) da violência, conferem mais eficiência às operações de policiamento, servem para prestar contas à comunidade, identificar os perfis dos agressores, avaliar a incidência sobre diferentes grupos sociais, o relacionamento entre agressor e vítima e chances de punição. O autor observa também que não é possível falar em um "número real de crimes", pois não se pode esquecer que a realidade empírica é socialmente construída.
De acordo com Beato Filho et al (2000), Minas Gerais, por exemplo, "tem assistido a um significativo aumento de suas taxas de criminalidade violenta". Em 1986 tínhamos uma taxa de 98 crimes por 100.000 habitantes; em 1997 essa taxa dobrou para 193 por 100.000 habitantes. Em termos absolutos, saltamos de 14.122 ocorrências para 32.477. No entanto, Belo Horizonte, a capital do Estado, não figura entre as 20 cidades mais violentas do Brasil.
Os crimes contra o patrimônio são os principais responsáveis por esse crescimento e muitas das ocorrências registradas pelas estatísticas oficiais foram praticadas por uma só pessoa. Assim, temos muito menos criminosos do que infrações, pois o desviante comete vários crimes durante sua carreira. Coletando dados, recentemente, para uma pesquisa sobre "carreira desviante", tivemos a oportunidade de entrevistar um jovem detento que, foragido por seis meses da justiça, praticou nada menos que oito assaltos a empresas nesse curto espaço de tempo.
A violência traz pesados prejuízos ao país: avalia-se que gastamos cerca de 12% de nosso PIB no combate à criminalidade; enfrentamos a fuga de investimentos, pois as empresas estrangeiras avaliam os riscos antes de se instalarem aqui; gastos públicos, descrédito nas relações entre a população e as autoridades e muitos outros problemas. As comunidades vitimadas também têm prejuízos, como queda no valor dos imóveis, limitações de transporte; desaparecimento dos serviços de saúde e assistência social; deterioração do ambiente físico; quebra de confiança e medo entre vizinhos, perda de capital social e danos na convivência. De modo geral, a violência deixa os lugares pobres ainda mais pobres.
Como conseqüência da situação, a imprensa e a população reivindicam constantemente mais policiais nas ruas e alguns governos fazem investimentos em viaturas, armamentos, tecnologia e aumentam o efetivo policial, sem contudo obter resultados sobre as taxas de criminalidade violenta. Silva Filho, citado por Gontijo (2000, p. 47), afirma que "o problema de segurança pública não se resolve apenas com ações policiais" e apresenta o caso do governo do Estado do Rio de Janeiro que, "em 1987, efetuou maciço investimento nas polícias civil e militar, incluindo também aumento de efetivo, como proposta para a solução dos problemas de criminalidade", mas não conseguiu reduzir as taxas que, ao contrário, continuaram subindo3.
Autores americanos, como Bayley (1994), também se opõem às propostas de aumento de verbas e de investimentos financeiros e materiais como solução isolada para a ineficiência policial e vêem no "modelo operacional" adotado, que se caracteriza por uma visão limitada da atividade criminosa, o principal problema.
De fato, as sociedades contemporâneas se tornaram mais complexas e o trabalho da polícia também seguiu essa tendência, exigindo reestruturação. Trata-se de promover o equilíbrio entre dois objetivos fundamentais, porém antagônicos: assegurar a paz e a ordem na comunidade e respeitar os direitos fundamentais dos cidadãos, sobretudo os mais pobres. A questão é: como fazer isso?
Na perspectiva que aqui se procura explorar e desenvolver, entende-se que há uma crise de saber nas organizações policiais e, particularmente, no campo do policiamento ostensivo. Um longo tempo sob forte influência de governos militares antidemocráticos deixou a Polícia Militar enfraquecida em relação aos conhecimentos mais básicos sobre como lidar e se entender com a população em geral, sobretudo com as comunidades mais pobres e marginalizadas, para com elas manter a ordem pública.
Pergunta-se agora, como fazer o policiamento? Qual a melhor forma de fazer policiamento? Existem outras formas de prevenir e combater a criminalidade? A polícia, tanto formalmente (pela sua direção, constituída pelo Estado) como informalmente (pelo comportamento dos praças e oficiais), procura uma aproximação com a universidade e com os centros de construção do saber em busca de respostas. Hoje, é comum encontrar policiais fardados circulando pelos corredores das universidades e presentes nas salas de aula.
Esse movimento pode ser interpretado como uma busca de novos saberes e conhecimentos. Convênios entre a Polícia Militar e instituições científicas são freqüentemente celebrados e noticiados pela mídia e as novas tecnologias de informação passam a ser largamente utilizadas. Buscam-se outras maneiras de abordar e de fazer segurança pública e praticar policiamento.
De acordo com Bittner (1975), a atividade policial pode ser concebida, basicamente, de duas formas distintas: o chamado modelo law-officer (polícia da lei ou legal) e o peace officer (polícia de paz).
No primeiro, a principal atividade da polícia seria o controle do crime. Os policiais orientam suas ações no sentido de prender e identificar culpados, coibir comportamentos desviantes e impor a ordem, de acordo com a lei. Agindo dessa forma, acreditam poder influenciar os resultados finais dos processos criminais. A perspectiva é fundamentalmente punitiva e a ação é sobre os desviantes e seus comportamentos. Esse modelo baseia-se numa concepção de policiamento considerada reativa, ou seja, que espera a ocorrência do crime para entrar em ação. Embora tenha como mérito restringir a ação do Estado sobre a população, na medida em que a polícia intervém apenas quando é chamada, tem a limitação de não atuar sobre crimes contra instituições, como os de colarinho branco ou sem testemunhas, pois nesses casos não há chamados.
São inúmeras as evidências da falência desse modelo e diversas "pesquisas realizadas sobre organizações policiais desmistificam uma série de crenças a respeito da polícia, mostrando que, ao contrário do que os policiais dizem, a polícia não tem sido eficaz no controle e prevenção de crimes" (Souza, 1999, p. 46). Moore (1992) também chama a atenção para esse tipo de policiamento que não valoriza as relações interpessoais com a comunidade. Trata-se, para ele, de um afastamento das pessoas que significa, também, um afastamento da realidade e traz como grave conseqüência o desconhecimento do contexto de problemas que se relacionam com a quebra da lei.
No segundo modelo, peace officer, o lado social da atividade policial é valorizado. A atividade não é mais voltada para a tipificação de pessoas suspeitas e criminosos e, o que é mais importante, preventivamente torna-se atenta aos riscos e ameaças à manutenção da ordem pública, partam essas ameaças do indivíduo, de grupos ou de situações. Nessa mesma linha entende-se que a função dos peace officers consiste muito mais em reduzir "o total agregado de problemas numa determinada área do que em definir a autoria do crime" (Souza, 1999, p. 29). Policiais estariam, assim, envolvidos em atividades que não implicam propriamente a invocação das leis, mas tomariam decisões práticas, levando em conta as circunstâncias em que as solicitações são formuladas.
"Embora a organização policial não tenha estabelecido regras e formas de controle da atividade dos peace officers e não haja unanimidade entre seus membros em reconhecê-la como um trabalho tipicamente de polícia, o que a torna legítima como um domínio policial é a crença do público em geral na polícia para decidir situações que, mesmo não contendo nenhum aspecto criminal ou legal, implicam no uso de uma autoridade que, para a maioria das pessoas, só o policial possui" (Souza, 1999, p. 29).
Nesse ponto, chega-se à conclusão de que combater o crime não é a mesma coisa que ir à guerra e, assim, a desmilitarização das polícias tem sido uma tendência de significado democrático, bem-sucedida em muitos países. Articular-se com a comunidade, com outros agentes que zelam pelo bem-estar social, como postos de saúde, hospitais, escolas, associações de bairro, obtendo sua colaboração, parece ser um caminho mais acertado e exitoso para as polícias.
Como exemplo, pode-se citar a experiência realizada pela polícia do condado de Baltimore em Maryland, nos EUA, descrita por SKOLNICK e BAYLEY (2002). Num programa denominado "policiamento orientado para o cidadão" um grupo especializado de policiais trabalhava conjuntamente com os policiais do patrulhamento de rotina "procurando localizar com precisão as condições existentes que não estavam respondendo à mobilização normal da patrulha (...). Nesse processo, eles analisaram os dados dos incidentes, conversaram exaustivamente com os moradores, fizeram visitas domicliares e exploraram a boa vontade de outras agências em ajuda-los" (p. 38). Percebeu-se que o furto de luvas de baseball era bastante comum numa determinada época do ano e a simples criação de um programa de financiamento para famílias de baixa renda, para aquisição desse bem, fez cair drasticamente esse tipo de ocorrência.
Em outros casos, a colocação de semáforos em determinadas esquinas e a presença de guardas de trânsito possibilitou a solução de problemas dos moradores, melhoria da ordem pública e ganhos no equacionamento do trabalho de vigilância do bairro.
Em muitas situações não existe propriamente um criminoso, mas um conflito social ou insatisfações sobre as quais a polícia vai atuar como solucionadora de problemas, mediadora e negociadora de acordos e, portanto, buscando um re-equilíbrio social. A ação é de pacificação e tranqüilização. A perspectiva é mais negociadora e menos punitiva. Trata-se de resolução de problemas e conflitos, em que a atuação do policial está mais próxima da de um agente de transformação social. A desordem, como sugere Wilson (1983), é um sinal de enfraquecimento de controles informais que a comunidade exerce sobre seus membros e se, percebendo isso, ela chama a polícia para ajudá-la é porque reconhece uma autoridade competente. E essa demanda não pode deixar de ser adequadamente respondida.
Essa concepção de ação policial, como veremos, está de acordo com as idéias de Becker (1977), segundo as quais poucas regras são consensuais e os grupos sociais criam os desvios ao estabelecerem regras para resolver seus problemas. Assim, a ordem social é um equilíbrio precário, que deve ser constantemente revisto e reconstituído pelos atores sociais, produto de negociações, de diplomacia, de barganha e de processos do tipo "toma lá, dá cá".
Sabemos que esse novo modelo de atuação implica uma mudança profunda no interior das organizações policiais, sobretudo em termos de descentralização das decisões, maior autonomia para os agentes e redefinição do papel da polícia, que estaria, assim, muito mais a serviço da população que do Estado. Trata-se, portanto, de uma mudança na cultura organizacional. A nosso ver, toda a política de gestão de recursos humanos teria de ser reorientada, sobretudo em termos de treinamento e qualificação profissional, mas também de seleção e avaliação de desempenho. Novas habilidades entram em jogo, como dialogar, argumentar e interagir com as comunidades, além de novas formas de pensar a criminalidade e suas causas. O uso da violência e da força seria substituído pela ação inteligente e habilidosa. Nesse sentido, iniciativas produzidas com base em pesquisas de natureza científica e análise de informações sobre os eventos, envolvendo cooperação entre universidades e polícias, têm levado a alguns resultados animadores.
Na realidade, a análise das atividades dos policiais revelou nosso profundo desconhecimento dessa profissão. Ao contrário dos estereótipos que apresentam o policial como um profissional constantemente envolvido com homicídios, armas, tiros, crimes e violência, descobriu-se que, na maior parte do tempo, ele atende a demandas de cunho assistencial e resolve problemas que exigem negociação com pessoas, grupos e com a comunidade (Bittner, 1990; Bayley, 1994; Beato, 1999). Por exemplo: ajudar pessoas alcoolizadas, apartar brigas de família e rixas entre vizinhos, socorrer vítimas de acidentes e doentes mentais, retirar animais das vias públicas, recolher mendigos, atender parturientes, etc. Segundo os pesquisadores, há uma "falácia dramática", muito explorada pela mídia, pois o envolvimento com delitos criminais não chega a representar 15% do tempo efetivo de trabalho da polícia.
Uma polícia descentralizada e comunitariamente orientada, ao estabelecer um contato mais estreito e intenso com a população, legitima seu trabalho e, além disso, reduz o "temor da criminalidade", fator muito importante para a qualidade de vida de uma população. Agindo assim, proativamente, a polícia pode levantar dados e informações relevantes e, baseando-se nestes, orientar seus esforços: onde estão ocorrendo os problemas? Com que freqüência? Qual a natureza desses problemas? Onde posicionar os policiais? Quais ações são mais efetivas? Quais são os grupos-chaves na comunidade? Como trocar informações com eles e produzir conhecimentos sobre essa realidade? Aqui a produção e a organização das informações têm papel decisivo.

Sabe-se, por exemplo, que a presença de testemunhas e sua efetiva disposição de colaborar é fator decisivo para a elucidação de crimes e conseqüente prisão de criminosos. O trabalho investigativo é, portanto, altamente dependente de testemunhas, cuja colaboração varia, evidentemente, conforme o grau de confiança que têm na polícia.
Essa reflexão sobre a natureza do trabalho policial em sociedades democráticas nos leva a discutir também as formas de pensar a criminalidade. Que modelos teóricos sustentam o modelo de polícia comunitariamente orientado? Na realidade, são eles que estão na base das diversas ações que visam a combater ou diminuir o fenômeno.
Pode-se conceber duas grandes perspectivas teóricas básicas na sociologia da criminalidade: as chamadas teorias culturalistas, que concebem a criminalidade como produto do sistema social e, portanto, como uma disfunção social, e as chamadas teorias racionalistas, que vêem o crime como uma atividade rotineira e normal, necessária e produzida pela própria sociedade.
Das teorias culturalistas deriva uma série de políticas públicas destinadas a reduzir a criminalidade atacando suas possíveis causas, ou seja, a pobreza, o desemprego, a falta de escolas e de oportunidades, etc. Das teorias racionalistas nasce uma outra estratégia de combate à criminalidade, segundo a qual o principal papel do Estado consiste em dissuadir o criminoso, um tomador racional de decisões, da prática de delitos.
O principal problema das chamadas abordagens culturalistas, principalmente estruturalistas-funcionalistas e marxistas, é determinar ações que não têm reduzido efetivamente as taxas de criminalidade. Na realidade, não têm sido empiricamente confirmadas. Diversos estudos têm mostrado, por exemplo, que redução de desemprego, crescimento econômico e aumento da escolaridade não têm efeito redutor sobre as taxas de criminalidade nas grandes cidades (Sapori e Wanderley, 2001). De fato, a melhoria desses indicadores é altamente desejável, mas não podemos esperar mudanças econômicas, sociais e políticas para depois combater a criminalidade4
Procurando relacionar crime e violência urbana com a construção e a consolidação da democracia no Brasil, Paixão (1988) refere-se a uma crença muito comum, na realidade uma hipótese infundada, que associa a pobreza com a criminalidade. Essa tese, que tem forte apelo ideológico, não explica, dentre outras coisas, por que a imensa maioria dos pobres urbanos opta pela adoção de padrões normais de comportamento e repudia moralmente a criminalidade. O autor sustenta que há, muito mais, uma vulnerabilidade dos pobres frente ao sistema de justiça criminal e, muito menos, uma suposta tendência ou motivação criminosa imposta por sua condição social.
Nessa direção, ganha corpo a hipótese de que, paradoxalmente, as teorias que percebem o crime como atividade rotineira e normal, colaboram de maneira mais direta para a adoção de modelos mais democráticos de atuação policial. Justamente porque não estão voltadas para o criminoso, mas para os contextos em que o crime se desenvolve, as teorias racionalistas acabam fornecendo bases para o desenvolvimento de políticas públicas mais articuladas com a promoção da cidadania, sobretudo junto às populações economicamente carentes. Essas teorias têm o mérito de desindividualizar, despersonalizar, despsicologizar e despatologizar a questão da criminalidade.
A meu ver, tudo começa com o já citado Becker (1977) e sua teoria dos rótulos5, quando afirma:
"Todos os grupos sociais fazem regras e tentam, em alguns momentos e em algumas circunstâncias, fazer com que elas sejam seguidas. (...) Quando uma regra é imposta, a pessoa que se supõe tê-la transgredido pode ser vista como um tipo especial de pessoa, alguém que não se espera que viva segundo as regras com as quais o grupo concorda. Ela é vista como marginal ou desviante. Mas a pessoa que recebe o rótulo de marginal pode ter uma visão diferente da questão. Ela pode não aceitar a regra em função da qual está sendo julgada e pode não considerar aqueles que a julgam como competentes ou legitimamente autorizados para julgá-la. Conseqüentemente, surge um segundo significado do termo: a pessoa que quebra as regras pode sentir que seus juízes são desviantes" (Becker, 1977, p. 49).
O autor não vê situações de vida ou questões de personalidade que possam explicar o desvio, pois o fato de um ato ser considerado desviante é posterior à sua ocorrência e depende de como as pessoas reagem a ele. Na sociedade há vários grupos e regras que entram em conflito e se contradizem e, quase sempre, haverá discordâncias sobre o que é mais conveniente numa dada situação. Temos, portanto, que as regras não são universalmente aceitas e que a ordem social é produto de negociações, acordos e barganhas, num processo essencialmente político.
"Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma conseqüência da aplicação por outras pessoas de regras e sanções a um transgressor. O desviante é alguém a quem aquele rótulo foi aplicado com sucesso; comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal" (Becker,1977, p. 60).
De fato, Paixão (1988) enfatiza o aporte da microssociologia para a teoria social, notadamente do interacionismo simbólico e da etnometodologia, pois podem contribuir para a rediscussão das relações entre marginalidade e criminalidade, resgatando a "dimensão política envolvida na aplicação das regras legais à periferia social" (p.173). Sem negar a ambigüidade dos mais pobres em relação à polícia, lembra Thompson e faz referência à desconfiança histórica das classes populares para com a organização policial, devido à "imposição de modelos de convivência e resolução de conflitos externos à comunidade e utilizados por outros contra ela" (p.178).
Becker (1977) criou o "modelo seqüencial do desvio", identificando quatro tipos de comportamento desviante:
• Tipo conformista (não desviante) - o indivíduo tem um comportamento obediente e é percebido como tal pelos outros.

• Tipo desviante puro - o indivíduo tem um comportamento "quebra-regras" e é percebido como tal pelos outros.

• Tipo falsamente acusado - o indivíduo tem um comportamento obediente, mas é percebido como desviante pelos outros.

• Tipo desviante secreto - o indivíduo tem um comportamento "quebra-regras", mas não é percebido como desviante pelos outros.6
Voltando-se sobretudo para os "falsamente acusados", o autor adota a idéia de "carreira desviante" e explora aquilo que chamou de "primeiro passo", ou seja, muitos atos não conformistas foram cometidos por pessoas profundamente mergulhadas numa subcultura particular e que não tiveram nenhuma intenção de opor-se às regras estabelecidas pelo grupo majoritário ou prevalente. Os habitantes do norte do México, por exemplo, consideravam, por sua cultura, perfeitamente normal fumar "marijuana", mas foram presos pela polícia americana quando os Estados Unidos ocuparam aquela região.
O fato de ser apanhado e publicamente rotulado como desviante é, para Becker (1977), um passo decisivo na fixação dos indivíduos num padrão estável de comportamento marginal ou marginalizante. Isso porque, posteriormente, são-lhes negados meios de prosseguir na vida através das rotinas comuns. O passo final seria a adesão a um grupo desviante, no qual o indivíduo vai encontrar apoio emocional, racionalizações ideológicas e, sobretudo, aprender a prosseguir em seu curso desviante com um mínimo de problemas
Temos, portanto, uma crítica às teorias sociológicas e psicológicas que pretendem estudar as motivações "doentias" dos "desviantes", considerando que todos o somos muito mais do que parecemos e temos motivações muito semelhantes. Essa crítica sugere que é melhor estudar por que as pessoas convencionais não levam até o fim seus impulsos desviantes. Nessa perspectiva, ou seja, da normalidade do crime, a teoria dos rótulos de Becker (1977) fomentou um tipo de discussão que, contribuindo para desmistificar e, de certa forma, banalizar o desvio, abriu caminho para a formulação de novos modelos explicativos: as teorias que atentam para a racionalidade dos criminosos num conjunto articulado de idéias que podemos reunir sob a denominação genérica de "teoria das oportunidades".7
Essa perspectiva, além de considerar que os desviantes têm motivações muito semelhantes às das pessoas normais, enfatiza que a conduta criminal se guia pelas mesmas pautas de racionalidade que orientam a conduta socialmente legítima. Assim, a decisão de executar um crime dependeria da probabilidade de que este redunde em beneficio superior aos custos e riscos envolvidos, entre os quais o mais significativo é a possibilidade de ser descoberto e enviado à prisão.
Há uma clara preocupação com os aspectos aplicados da criminologia, no sentido da formulação de políticas e programas de prevenção e controle do crime, voltados, portanto, para a solução mais imediata dos problemas da criminalidade e tendo efeito direto, por exemplo, na redução das taxas de criminalidade nas grandes cidades. O elemento teórico comum é o da deliberação racional dos indivíduos quanto à criminalidade, que seria, assim, uma escolha compensadora. Considera-se, ainda, que os criminosos podem ser dissuadidos ou desencorajados do crime.
Há tentativas interessantes de redução das oportunidades de crime através de medidas que associam arranjos arquitetônicos com mudança de comportamento da comunidade. Trata-se de condições ambientais, de espaço e construções que dificultem e desestimulem o trabalho de ofensores, possibilitando um maior controle e vigilância pela própria população sobre as casas e edifícios. Sabe-se que a manutenção de ruas, calçadas, paredes e muros limpos, os cuidados com o ambiente físico, de modo geral, têm correlação positiva com a queda da criminalidade em muitos locais.8
A construção de grandes prédios de habitação coletiva, cujos moradores mal se conhecem e em que existem numerosos acessos não controlados, que facilitam a ação de predadores, faz com que as pessoas percam aquilo que alguns urbanistas chegaram a chamar de instinto natural de "territorialidade". Soluções arquitetônicas de recuperação de moradias públicas que procuram estimular seus moradores a exercer essa "territorialidade" relacionam-se com a idéia de "espaço defensivo". Trata-se de reduzir o anonimato e promover a vigilância natural, ou seja, dos próprios moradores, bem como de reduzir as vias de escape para ofensores potenciais.
A abordagem das "atividades rotineiras" busca explicar a evolução das taxas de crime através das circunstâncias em que ocorrem. Desse ponto de vista, para que um ato predatório ocorra, seria necessária a convergência, no tempo e no espaço, de três elementos ou condições (Cohen e Felson, 1979 citado por Sapori e Wanderley, 2001, p. 48):
• Um ofensor motivado. Alguém predisposto a cometer um delito.

• Um alvo disponível. Uma pessoa ou um objeto que possa ser atacado.

• Ausência de guardiães capazes de impedir a violação.
A "prevenção situacional de crimes", muito utilizada atualmente, toma como base a "teoria das atividades rotineiras" e um conjunto de técnicas para a redução da criminalidade. Consiste em aumentar o esforço necessário para se cometer um crime, incrementando-se dificuldades e riscos percebidos pelos possíveis agressores, desenvolvendo-se e mantendo-se um ambiente com regras claras e bem definidas, removendo-se possíveis desculpas e possibilidades de mal-entendidos.
A ênfase recai sobre a conjunção de fatores ambientais e temporais que criariam "oportunidades" e é isso que precisa ser evitado. "A idéia não é reformar indivíduos, o que é extremamente difícil, mas dificultar a ocorrência de crimes" (Beato Filho, 1999, p. 24). Pesquisas mostram que muitos desviantes não saem de casa já com a intenção de roubar. Na verdade, o crime ordinário acontece regularmente em alguma situação e é sobre essa situação que se deve estabelecer controle. Por exemplo, o aumento de arrombamentos residenciais correlaciona-se com mudanças na estrutura de empregos da sociedade: um maior número de pessoas, incluindo mulheres, abandona a casa para trabalhar, deixando-a mais vulnerável às atividades predatórias.

A chamada "análise econômica dos crimes" defende a idéia de que os indivíduos, criminosos ou não, são ativos tomadores de decisões racionais que respondem a incentivos e custos associados às suas ações. Entende-se que a atratividade da via criminosa é tanto maior quantos forem os seus ganhos materiais, psíquicos e simbólicos, quando comparados com os benefícios do trabalho e outros meios legítimos de satisfação dos interesses humanos. Assim, o indivíduo avalia se o crime compensa, se o beneficio do crime na produção de renda, prestígio, poder e/ou emoção é maior que os riscos ou custos de uma possível punição.

Não obstante a importância dos modelos econômicos, sobretudo por desmistificarem e chamarem a atenção para a banalidade e a natureza rotineira do crime, receberam severas críticas por serem insensíveis a determinadas formas de crimes, sobretudo os chamados crimes passionais, e por não perceberem a complexidade do fenômeno nas sociedades modernas. Diz-se também que o modelo de mercado não se ajusta a muitos crimes ordinários, pois, embora existam inúmeras vítimas, não há muita "demanda" de pessoas dispostas a serem atacadas. Isso seria absurdo.
Entretanto, sem negligenciar a complexidade e a sutileza do tema da criminalidade9, o que se pretende-se aqui é alertar para a delicadeza do problema do "primeiro passo". Não seria, quase sempre, uma questão de oportunidade? A situação não seria, muitas vezes, fortemente agravada pelo processo de rotulação? Se respondemos afirmativamente a questões desse tipo, faz-se necessário rever o papel e a responsabilidade das polícias, do Estado, da comunidade e, particularmente, dos psicólogos, no sentido de evitar e/ou interromper carreiras criminosas, impedindo a rotulação pública daqueles que ainda não são, mas podem se tornar verdadeiramente criminosos, justamente em função do tratamento recebido por parte das autoridades, da comunidade e dos profissionais que os atendem.

Referências
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Como citar este artigo:




Formato ISO

AZEVEDO, Marco Antônio de. Concepções sobre criminalidade e modelos de policiamento. Psicol. cienc. prof., set. 2003, vol.23, no.3, p.18-25. ISSN 1414-9893.



Formato Documento Eletrônico (ISO)

AZEVEDO, Marco Antônio de. Concepções sobre criminalidade e modelos de policiamento. Psicol. cienc. prof. [online]. set. 2003, vol.23, no.3 [citado 09 Maio 2010], p.18-25. Disponível na World Wide Web: . ISSN 1414-9893.

Novo Enfoque Da Gestão Pública Sócio-Ambiental No Brasil: Um Estudo Sobre As Políticas Públicas Socio-Ambientais Na Administração Pública Brasileira

O atual modelo de Estado e de Administração Pública no Brasil busca garantir e respeitar a pluralidade cultural, a sociodiversidade, os direitos difusos e coletivos, também interpretados como direitos sócio-ambientais conforme a Carta Maior. O socioambientalismo no Brasil é caracterizado pela busca do desenvolvimento não só da sustentabilidade de ecossistemas, espécies e processos ecológicos, mas também a sustentabilidade social e cultural por meio de políticas públicas sociais. Desta forma, busca-se identificar o papel das políticas públicas sob o enfoque sócio-ambiental e compreender a sua proposta de mudança na construção de uma nova democracia no Brasil e de uma nova gestão pública. Neste sentido, destaca-se os novos direitos conforme a Constituição de 1988 e a influência do movimento sócio-ambiental para as políticas públicas sociais. Em primeira instância, busca-se fazer uma contextualização do Estado Democrático no mundo no Brasil e a gestão pública democrática participativa. Num segundo momento, estuda-se conceito de políticas públicas, os novos direitos e a relação da emergência do socioambientalismo na construção das políticas públicas no Brasil.

2 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A GESTÃO PÚBLICA SÓCIO-AMBIENTAL NO BRASIL: CONTEXTUALIZAÇÃO

Partindo da análise da evolução histórica do Estado de Direito no mundo, observa-se que os diferentes modelos de Estado construídos ao longo da história moderna estão representados pelo Estado Liberal, no século XVIII, a partir da Revolução Francesa passando para o Estado Social ou Estado Providência, durante o século XIX, e posteriormente, para o de Bem-estar Social e Estado Democrático de Direito, a partir de meados do século XX. A importância de pesquisar o Estado Democrático de Direito brasileiro está no processo de construção de um novo Estado, mais eficiente, mais cidadão, de caráter social, democrático e principalmente participativo. Neste cenário, estão também inseridas as diferentes correntes de Administração Pública. Identifica-se atualmente, que o Estado de Direito tenta firmar o papel da promoção dessa nova liberdade. Observa-se também, as transformações ocorridas na passagem do Estado Moderno para o Estado Contemporâneo que atingem tanto a área do Direito como a da Administração. Assiste-se um descortinar dos chamados novos direitos dentro de uma nova percepção de realidade. Constata-se que os direitos estão intimamente ligados a noção de Estado e de Sociedade.Num primeiro momento, busca-se investigar desde suas raízes, o Estado de Direito, conforme a Carta Maior, com o objetivo de compreender a importância da construção de uma Administração Pública Democrática Participativa no Brasil. Nesta direção, nos anos 90, encontramos no Brasil, a reforma do Estado. Esta teve como objetivo a redefinição da organização da Administração Pública, com o intuito de superar mazelas e assim implantar uma Nova Administração Pública. Analisar a reforma administrativa no Brasil é também investigar o estado de direito brasileiro, pois ocorrem alterações do texto constitucional que envolvem novas orientações jurídico-políticas. (Bortoli, 2000.p.02) Destaca-se que a participação popular no Estado de Direito proporciona um avanço nas formas de controle da Administração. Sublinha-se que através da participação, a coletividade fiscaliza de maneira ativa os abusos cometidos na Administração Pública. É portanto, uma forte ferramenta na construção do Estado Democrático de Direito, assim como a efetivação dos direitos humanos. Houve um crescimento da Administração Pública sobre a vida social e desta forma, acentuou-se a necessidade da criação de novos mecanismos objetivando a proteção dos cidadãos. Neste sentido, busca-se efetivar e remodelar o estado de direito brasileiro composto pelos diversos ‘atores sociais e políticos’ da sociedade, pelos cidadãos ativos que buscam atuar em diferentes espaços públicos de participação. Hoje, o estado de direito se firma no papel da liberdade identificada pelos direitos fundamentais tanto de cunho coletivo quanto individual e pelos direitos humanos. O Estado de Direito garante em lei - na Carta Maior, Constituição de 1988, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político. Assim como, o exercício dos direitos sociais (educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados) e individuais (a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos).O Estado de Direito garante ainda, que todos brasileiros ou estrangeiros domiciliados no país, estejam submetidos ao mesmo regime de direito, ou seja, ao mesmo conjunto de regras. Entende-se que esta forma jurídica consagra-se pelo princípio da legitimidade na modernidade, onde existe subordinação do poder às leis gerais.Para Perez (2004), o Estado de Direito na atualidade não pode ser considerado simplesmente organizado com base na lei. Destaca que o Estado de Direito é aquele que possui sua atuação pautada no Direito, sendo pela Constituição, pelos princípios gerais do Direito, pelas leis e regulamentos. Conforme Canotilho (1993), o Estado de Direito deve possuir a promoção da liberdade, a realização dos direitos humanos e se serve de um Direito renovado por ferramentas de atuação que aproximem a sociedade e o Estado, que rompa com as fronteiras que os separam e que possibilitem a participação do cidadão. O Estado Democrático de Direito é o exercício da democracia e da participação dos cidadãos de maneira plena e clara, onde o povo é dono do poder político e participa de forma livre de acordo com seus ideais. Neste sentido, questiona-se a existência de um Estado Democrático de Direito no Brasil.Fazem parte da realidade sócio-ambiental brasileira as populações envolvidas e atingidas em situações de injustiça sócio-ambiental. São elas: as crianças, mulheres, populações indígenas, populações litorâneas e ribeirinhas (pescadores e caiçaras, populações urbanas marginalizadas, quilombolas e afro-descendentes, trabalhadores/as e populações rurais, trabalhadores/as extrativistas, trabalhadores/as industriais e urbanos(as) entre outros.Para Bobbio (1992), “O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” No Estado de Direito o indivíduo tem uma maior amplitude em relação aos modelos anteriores de Estado porque envolve os direitos privados e públicos. O Estado de Direito pode ser entendido como uma evolução dos modelos de Estado liberal e social porque envolve em torno de si princípios de proteção da liberdade humana, com o princípio de justiça social, os quais correspondem às ambições do Estado Social. O Estado de Direito nasce, a partir da incapacidade do modelo liberal, diante da exclusão social acelerada nas sociedades pós-industriais, assim como a negação de um modelo de Estado Social que venha limitar, a expansão do capital. Em seu eixo, agrega-se a proteção de uma concepção de democracia, segundo a qual os direitos fundamentais devem ser concretizados pelo Estado a partir das diretrizes da Constituição Federal de 1988. (Appio, 2004) Neste sentido, observa-se que o Estado de Direito tem correlação com conteúdo Estado Social, porque esse tem através dos direitos sociais, identificados como os direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social produzida, uma via, um caminho por onde a sociedade entra no Estado modificando sua estrutura formal, promovendo transformações. Entende-se que houve um processo de integração do Estado político com a Sociedade Civil alterou-se significativamente a forma jurídica do Estado , assim como os processos de legitimação e a estrutura da administração. (Bobbio,1998). A realidade da gestão sócio-ambiental pública brasileira atual está muito distante do próprio conceito de socioambientalismo, porque existe um abismo entre as questões sociais, isto é, a dura realidade das minorias e ambientais no que concerne ao conceito social. Pensar a gestão sócio-ambiental significa compreender que o socioambientalismo é o desenvolvimento não só da sustentabilidade de ecossistemas, espécies e processos ecológicos, mas também a sustentabilidade social e cultural. de coletividades específicas, por exemplo, os indígenas. A primeira refere-se à sustentabilidade baseada na biodiversidade e a segunda refere-se à questão do reconhecimento do sujeito no Estado de Direito da sociodiversidade existente no Brasil.(Santilli, 2005)A palavra socioambientalismo não está inserida na Constituição de 1988. O que existe é a compreensão dos direitos socioambientais a partir de direitos coletivos (meio ambiente, patrimônio cultural), inscrito na Constituição. Inicialmente, identifica-se o socioambientalismo como um processo histórico de redemocratização do país, iniciado com o fim do regime militar, em 1984, e consolidado com a promulgação da nova Constituição, em 1988, e a realização de eleições presidenciais diretas, em 1989. (Santilli, 2005) Sua emergência baseou-se no pressuposto de que as políticas públicas ambientais só funcionam com eficácia social e sustentabilidade política se incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição socialmente justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais. É fundamental amadurecer a visão sócio-ambiental pois desta forma amplia-se a percepção de que as políticas públicas para o meio ambiente e desenvolvimento sustentável devem levar em consideração as demandas e os contextos socioculturais das populações locais em sua diversidade. Além disso, passa-se a considerar que a sustentabilidade deve ser tanto ambiental quando social e econômica.Sabe-se que no Brasil, a cultura dos povos tradicionais, indígenas e quilombolas fazem parte nossas raízes e principalmente da nossa história, produzem conhecimentos e inovações nas artes, literatura e ciências. Manifesta-se por meio de desenhos, danças, lendas, músicas, técnicas de manejo dos recursos naturais, de caça e pesca, a utilização das propriedades medicinais e alimentícias das espécies existentes nas regiões onde vivem. Verifica-se que tais conhecimentos, considerados bens intangíveis, vem ganhando ‘atenção’ nas sociedades industriais, pelo potencial de exploração econômica, em destaque a área de biotecnologia. Porém não reconhecem os direitos associados desses povos. (Santilli, 2005)Neste sentido o socioambientalismo originou-se na idéia de políticas públicas ambientais envolvidas com as comunidades locais detentoras de conhecimentos e de práticas de caráter ambiental. O socioambientalismo permite desenvolver a sustentabilidade de maneira mais ampla possibilitando que num país denominado pobre, com diferenças sociais, desenvolva-se a sustentabilidade social, além da sustentabilidade ambiental, de espécies e ecossistemas.(Guimarães, 2001).O socioambientalismo abrange uma ampla variedade de organizações não-governamentais, movimentos sociais e sindicatos, que envolve a questão ambiental e social como uma dimensão de importante atuação. (Leis,1995)Inclui-se também diversos movimentos sociais, tais como: movimento dos seringueiros, a interação com grupos ambientalistas permite-lhes elaborar o programa das reservas extrativistas, de relevância internacional depois do assassinato de Chico Mendes; os movimentos indígenas, a interação com grupos ambientalistas que abordam de forma mais ampla a questão da proteção ambiental de sua luta e pela demarcação de reservas; o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra que em algumas regiões tem avançado na direção da “reforma agrária ecológica”; setores dos movimentos de moradores tem incorporado a proteção ambiental através de diversos mecanismos (questionamento de fábricas poluidoras, demanda de saneamento básico ao poder público, mutirões para cuidado de áreas verdes e limpeza de córregos e lagoas; entre outros movimentos.O maior desafio do socioambientalismo é conciliar as atividades produtivas necessárias para a sobrevivência de grupos sociais com a garantia de manutenção dos recursos naturais. Nesse sentido, entre as décadas de 1980 e 1990, inúmeras iniciativas e outras organizações comunitárias de base local procuravam associar ações de desenvolvimento e de conservação ambiental.(Santos, 2005)Sabe-se que o socioambientalismo está em processo de construção, apesar de ter avançado nas últimas décadas na construção de alianças estratégicas entre o ambientalismo e outras vertentes do movimento social tomado de forma mais ampla. Isso reforça a necessidade de espaços públicos nos quais possam ocorrer a interlocução, o diálogo entre os diferentes e a viabilização de alternativas. Embora deva-se considerar a importância estratégica de uma aliança entre os movimentos sociais, Ongs ambientalistas ou de desenvolvimento e seus efeitos positivos para a construção de alternativas para a formulação de políticas públicas, é preciso reconhecer que essa aliança ainda representa grande desafio. (Santos,2005)É cada vez mais consensual as exigências de ordem ambiental, social e política fazer parte da pauta de amplo grupo de atores sociais, ao passo que são necessários espaços de articulação intersetorial nos quais se possam equacionar dos diversos interesses, necessidades e pontos de vista sobre o processo de desenvolvimento.Identifica-se alguns pilares para um regime jurídico de garantia dos direitos desses povos, entre eles: o reconhecimento da titularidade coletiva de seus conhecimentos, evitando a exclusão de uma ou mais comunidades detentoras dos saberes em questão, e possíveis rivalidades entre elas; o reconhecimento dos sistemas de representação e legitimidade dos povos, por meio de um pluralismo jurídico; uma definição mais clara de população tradicional, que ainda é polêmica e deixa vulneráveis essas comunidades; o estabelecimento do consentimento informado processual como procedimento obrigatório para o acesso, uso e patenteamento da biodiversidade e conhecimentos associados.

3 POLÍTICAS PÚBLICAS : CONTEXTUALIZAÇÃO

As políticas públicas são consideradas atividades típicas do Estado social de direito e conseqüência direta da necessidade de participação social em sua efetivação. A autora compreende por políticas públicas, a organização sistemática dos motivos fundamentais e dos objetivos que orientam os programas de governo relacionados à resolução de problemas sociais. (Bucci, 2002)As políticas públicas permitem romper com as barreiras que separam a administração pública da sociedade. Esta passa a participar da concepção, da decisão e da sua implementação. Pode-se citar as audiências públicas e as consultas públicas, como exemplos práticos da participação na elaboração das políticas públicas. Já o plebiscito administrativo, o referendo, as comissões de caráter deliberativo são exemplos da participação no processo de decisão. Exemplos de execução de políticas públicas são as comissões de usuários, a atuação de organizações sociais ou de entidades de utilidade pública e a expansão dos serviços públicos. (Perez, 2004)Entende-se que a relação entre o Estado, às classes sociais e a sociedade civil, proporciona o surgimento de agentes definidores das políticas públicas. A partir do contexto da produção econômica, cultura e interesses dos grupos dominantes são construídas as políticas públicas, sua elaboração e operacionalização, de acordo com as ações institucionais e, em particular. (Boneti, 2006)Constata-se a predominância dos interesses das elites econômicas camuflados nas diversas políticas públicas, porém com objetivos de expansão do capitalismo internacional. Utilizam-se de temas atuais como o desenvolvimento sustentável para transmitir uma imagem positiva de preocupação e engajamento no desenvolvimento social e ambiental. Percebe-se que é inviável considerar a formulação de políticas públicas a partir somente da determinação jurídica, fundamentada em lei, como se fosse uma instituição neutra. Deve-se levar em consideração a existência da relação entre o Estado e as classes sociais, em particular entre o Estado e a classe dominante. (Boneti, 2006)Pode-se pensar também, as políticas públicas como algo relacionado com o público, a arte ou a ciência de governar, de administrar e de organizar. A expressão ‘políticas públicas’ é uma ação voltada ao público e que envolve recursos públicos. Pode-se considerar, que medidas de intervenção meramente administrativas, por parte do Estado, sem mesmo envolver o orçamento público, são consideradas políticas públicas. (Boneti, 2006)A tarefa de conceituar políticas públicas envolve certa ‘complexidade’ na dinâmica da sua formulação e sua operacionalização. É preciso analisar desde o surgimento da idéia, sua elaboração até o amadurecimento da mesma, sua efetivação, resultando numa ação pública. Deve-se ir além de avaliar seus resultados em relação ao atendimento aos direitos sociais. Sabe-se que as políticas públicas envolvem a organização da sociedade civil, os interesses de classes, os partidos políticos e agentes responsáveis pela sua elaboração, operacionalização e controle. No que se refere política pública governamental, pensa-se que sendo a política pública um processo sujeito a pressões e articulações políticas, ela pode ser entendida como uma ação intencional de Governo, instrumentalizada pelo Estado, cujo impacto está dirigido a um segmento majoritário da população, ou como um conjunto de ações (ou omissões) que manifestam determinada modalidade de intervenção do Estado, em relação a uma questão que seja de interesse para outros atores da sociedade civil.Já uma política pública de cunho social pode ser entendida da mesma forma, ou seja, como uma ação de Governo destinada a melhorar o bem-estar ou a qualidade de vida dos cidadãos, provendo-os de serviços e renda, ou então como uma ação deliberada das classes dominantes para manter o trabalhador assalariado sob domínio do capital.Um terceiro enfoque, de acordo com o modelo liberal, diz que a política social objetiva permitir aos indivíduos a satisfação de certas necessidades não levadas em conta pelo mercado, isto é, o Estado só tem a responsabilidade de atender aos setores mais pobres, cuja capacidade financeira não lhes permite custear as suas necessidades mínimas. Entende-se a política pública como a estratégia de ação e metas desejadas (parte pragmática), num processo de decisão política, construído socialmente, de acordo com os interesses dos segmentos envolvidos. (Carvalho, 2000) É interessante, aclarar uma distinção entre políticas de Estado e políticas de Governo. Entendemos como políticas de Estado, determinadas idéias e princípios que se caracterizam pelo seu caráter de permanência, da legimitidade junto à sociedade e junto à burocracia e pela sua materialização em textos legais e em instituições específicas.Abaixo desta superestrutura existem os governos, que são gestores temporários destas políticas de Estado. Conciliar estes dois aspectos (a estrutura e a conjuntura) é um dos problemas mais complexos da administração pública, pois cada governo vai querer, dar a sua interpretação pessoal sobre os princípios de ação do Estado, de acordo com a sua tendência política e articulações de interesses.É por este motivo que se fala em ‘reforma do Estado’, que nada mais é do que uma inversão de princípios e de valores, pois ao invés do governo se adaptar às normas constitucionais procura reformar as leis e as instituições moldando-as de acordo com seus interesses políticos e administrativos.Quanto aos diferentes tipos de política pública, define-se como intervenções do Estado, de três tipos: distributivas, redistributivas e regulatórias. Estas últimas envolvem uma decisão de curto prazo a respeito de quem serão os beneficiados diretos de uma política determinada. Já políticas distributivas vão se acumulando ao longo do tempo e envolvem todos os setores institucionais envolvidos. Por outro lado, as decisões de caráter redistributivo têm sentido muito mais amplo e consideram a sociedade dividida em diferentes classes e setores sociais.No Brasil, as políticas públicas muitas vezes beneficiam grupos sociais específicos, regiões, municípios, ou seja, são sempre beneficiados os segmentos sociais com maior força política no poder legislativo e com maior força financeira nos meandros da sociedade civil. Uma política pública após sair da instância legislativa e passar pelo setor burocrático segue em direção a sua operacionalidade, comandada por agentes do partido político que se diz autor do projeto.Significa dizer que uma política pública, da elaboração a sua operacionalização, envolve uma rede de micro poderes contribuindo com o fortalecimento e interesses específicos de cada instância do poder. As pessoas que entram em contato com as políticas públicas no decorrer de suas longas trajetórias, não pensam de modo uniforme, não tem a mesma interpretação de intervenção na realidade, etc. As políticas públicas, ao longo de seus percursos, são contaminadas por interesses, inocências e sabedorias. (Boneti, 2006)



4 AS POLÍTICAS PÚBLICAS SOCIOAMBIENTAIS NA CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS PÚBLICOS DE PARTICIPAÇÃO E OS NOVOS DIREITOS NO BRASIL

O conceito de socioambientalismo faz parte da definição jurídica brasileira, isto é fato. O Poder Judiciário é responsável pela aferição do cumprimento da função legal em prol do socioambientalismo. O Poder Judiciário tem demonstrado inoperância na fiscalização da função sócio-ambiental, especialmente quando as ações têm por objeto conflitos coletivos. Nesses casos, há um número elevado e crescente de violações aos direitos humanos. Exemplificam- se aqui os inúmeros casos de desrespeito aos índios.Este ponto do artigo relaciona o campo das políticas públicas com a temática sócio-ambiental, tendo por referências o enfoque ecossocial, a ecologia política e o movimento pela justiça social, ambiental, cada qual destacando uma dimensão específica.No enfoque ecossocial destaca- se a dimensão do conhecimento cultural, com ênfase no desenvolvimento de análises integradas, sem a qual a luta política poderia recair sobre ideologias simplistas baseadas em ciências positivistas e fragmentadas, as quais ignoram a complexidade dos problemas sócio-ambientais e suas incertezas; Na abordagem da ecologia política e no conceito de justiça ambiental enfatiza- se a dimensão do poder e do Estado a partir da (re)produção das relações de dominação centro-periferias marcadas pelo desprezo sobre as pessoas e a natureza; e finalmente No movimento pela justiça ambiental realça-se a dimensão da ação gerada pela consciência que inúmeros problemas ambientais possuem em sua origem em um modelo de desenvolvimento injusto, particularmente para com as populações mais pobres e discriminadas. Nesse sentido, destaca- se a experiência da Rede Brasileira de Justiça Ambiental como um exemplo estratégico para o enfrentamento de problemas socioambientais em países latino-americanos como o Brasil. Do ponto de vista da responsabilidade social no tocante ao meio ambiente, pode-se dizer que se o Estado de Direito garante ao cidadão direitos capazes de assegurar a dignidade humana, pode-se dizer que as premissas sócio-ambientais estão preconizadas na legislação brasileira.No tocante aos novos direitos, para Bobbio (1992) a denominação dos novos direitos está relacionada com o desenvolvimento e com a mudança social. Esses são os fatores condicionantes para o ‘nascimento’, a ampliação e a universalização dos novos direitos. Ocorre uma espécie de multiplicação histórica dos novos direitos.A própria expressão novos direitos já indica que é necessário apresentar um recorte específico sobre sua denominação e seus instrumentos que os viabilizam. É preciso identificar a efetividade dos direitos e sua concepção de cidadania envolvida, para posteriormente perceber sua relação com as políticas públicas sócio-ambientais na construção de espaços públicos de participação. Entende-se que os direitos de cidadania são típicos do Estado e do Direito no Século XX e por isso fazem parte da categoria de ‘novos’ direitos. A cidadania é também entendida como os direitos que decorrem da relação de participação que se estabelece entre Estado e todos os integrantes da Sociedade Civil, da qual aquele é instrumento, seja numa perspectiva individual, seja coletiva.Percebe-se um descortinar dos chamados novos direitos dentro de uma nova percepção de realidade. Enxerga-se a transformação de direitos tradicionais em direitos com uma forte carga social. São as necessidades, os conflitos e os novos problemas de caráter social e ambiental, colocados pela sociedade atual que permitem surgir ‘novas’ formas de direitos como um verdadeiro desafio. Da mesma forma, a partir dessa realidade social, as políticas públicas são inseridas neste contexto social e político, de maneira mais ampla e não somente como a aplicação dos recursos públicos. Interessa consignar aqui, que os novos direitos são consagrados pelo socioambientalismo, resgatam e reforçam a dimensão democrática participativa das políticas públicas.Entende-se que a Constituição de 1988, além de traçar rumos ao modelo de Estado e ao modelo de administração, inaugura os ‘novos’ direitos e, portanto novas políticas públicas para o Estado e a coletividade. Estes chamados novos direitos podem ser inseridos no conjunto teórico a que denominamos direitos sócio-ambientais. Observa-se que no Estado, o tema dos ‘direitos’ esteve muito presente nos debates da sociedade política. Vemos nas últimas décadas deste século, a criação de leis e orientação para políticas públicas que envolvem a administração pública. Num primeiro momento essas discussões aparecem na área dos direitos humanos e políticos, ao final do regime militar. Posteriormente, têm-se os direitos sociais, no período de transição para a democracia, especialmente na fase da elaboração da Constituição de 1988 e ao final dos anos 90 e início deste novo milênio, os direitos culturais, ligados ao tema da justiça e da eqüidade social. (Gohn, 2005)Interessa-nos nesta pesquisa observar que os novos direitos estão ligados aos direitos que decorrem da ‘relação de cidadania’ e abrem caminhos para a ‘participação cidadã’ na gestão de um Estado mais democrático e participativo. Estão relacionados com as políticas públicas e a administração pública. Eles envolvem o Estado e a Sociedade com o exercício da cidadania. Portanto, esses ‘novos’ direitos emergiram no final do século XX e projetam grandes e desafiadoras discussões nos primórdios do novo milênio.Percebe-se que os novos direitos estão diretamente relacionados com as necessidades humanas essenciais de cada época. Estão em permanente redefinição e criação dentro do seu contexto histórico, abrindo espaço para múltipla gama de direitos emergenciais. Essas necessidades são diversas como: qualidade de vida, bem-estar, materialidade social, políticas, religiosas, psicológicas, biológicas e culturais. São as situações de carência que constituem a razão motivadora para a possibilidade dos novos direitos. (Wolkmer, 2003)Não obstante, todas as modificações sociais do Estado e do surgimento de direitos totalmente diversos do direito típico do Estado moderno (de cunho ‘individualista’), os operadores do direito, muitas vezes persistem em trabalhar com conceitos que não correspondem com a atualidade, operando no interior de uma outra realidade. Nesse rumo, as últimas décadas o debate sobre os espaços públicos no Brasil emergiu impactando a elaboração da Constituição aprovada em 1988. Sabe-se que tais desdobramentos foram baseados no processo de redemocratização do país, no critério da participação popular na gestão públicas. Por conseguinte, o texto constitucional estabeleceu importantes estratégias voltadas a participação popular na gestão de políticas públicas por meio de conselhos gestores. Este novo desenho de Estado leva a uma nova concepção de suas funções, de suas políticas, de suas relações com a sociedade civil e de um aumento da capacidade e da vontade dos cidadãos, para tomar controle de suas vidas, para transformá-las e melhorá-las. Dentro deste novo ambiente mundial, com todas as influências, pensa-se nas políticas públicas de forma mais ampla. (Carvalho, 2000)No tocante aos aspectos políticos, a sociedade brasileira amadureceu sua opção pela via democrática. Destaca-se que os conceitos como transparência, participação e controle social estão cada vez mais presentes nos debates, visto como um desafio.É certo a relação indissociável entre os aspectos sociais e ambientais atualmente. Reconhecemos que na sociedade os problemas antes vistos pela ótica da ecologia e do meio ambiente hoje são analisados por um prisma sócio-ambiental. Reformulou-se a legislação ambiental brasileira e criou-se um sistema nacional de unidades de conservação. Tornou-se forte a noção de desenvolvimento sustentável, assim como a argumentação de diversos setores ou segmentos sociais. Vemos a presença do socioambientalismo envolto em políticas públicas e nos espaços públicos de participação.Interessa-nos observar que o movimento ambientalista passou por mudanças significativas, migrando do preservacionismo para o socioambientalismo, na medida em que a noção de sustentabilidade passa a englobar também os aspectos sociais econômicos inerentes ao desenvolvimento sustentável.É cada vez mais consensual o entendimento que os problemas sócio-ambientais vividos pela sociedade brasileira podem ser solucionados pela negociação e pelo aperfeiçoamento das estratégias e mecanismos de regulação do uso dos recursos naturais. A busca de soluções para esses problemas depende do aprimoramento institucional da sociedade e do aumento da sua capacidade de balancear os interesses e pontos de vistas relacionados ao uso de recursos naturais.Confirma-se que a participação popular e o aumento das capacidades e habilidades dos atores sociais são essenciais na busca de soluções para problemas na sociedade atual. Somente pela ação coletiva e pela consolidação de espaços públicos, nos quais os diversos interesses e pontos de vista possam se fazer ouvir e representar, é que os problemas socioambientais podem encontrar soluções democráticas, de eqüidade e sustentabilidade que norteiam o desenvolvimento sustentável.

5 MOVIMENTO SOCIOAMBIENTAL NO BRASIL

O socioambientalismo originou-se na idéia de políticas públicas ambientais envolvidas com as comunidades locais detentoras de conhecimentos e de práticas de caráter ambiental. O socioambientalismo permite desenvolver a sustentabilidade de maneira mais ampla possibilitando que num país denominado pobre, com diferenças sociais, desenvolva-se a sustentabilidade social, além da sustentabilidade ambiental, de espécies e ecossistemas. Verifica-se ainda um abismo entre as questões sociais e ambientais no Brasil. Necessita-se criar uma ponte para que possa unir estas duas questões fundamentais para a sustentabilidade social vista aqui de forma ampla. O socioambientalismo traz a tona esse desafio. (Santilli, 2005)O socioambientalismo abrange uma ampla variedade de organizações não-governamentais, movimentos sociais e sindicatos, que envolve a questão ambiental e social como uma dimensão de importante atuação. O socioambientalismo inclui diversos movimentos sociais, tais como: movimento dos seringueiros, a interação com grupos ambientalistas permite-lhes elaborar o progama das reservas extrativistas, de relevância internacional depois do assassinato de Chico Mendes; os movimentos indígenas, a interação com grupos ambientalistas que abordam de forma mais ampla a questão da proteção ambiental de sua luta e pela demarcação de reservas; o movimento dos trabalhadores rurais sem-terra que em algumas regiões tem avançado na direção da “reforma agrária ecológica”; setores dos movimentos de moradores têm incorporado a proteção ambiental através de diversos mecanismos (questionamento de fábricas poluidoras, demanda de saneamento básico ao poder público, mutirões para cuidado de áreas verdes e limpeza de córregos e lagoas; entre outros movimentos). (Hogan, & Vieira, 1995.p.88).No que se refere a sustentabilidade social, trata-se de instituir como valor primordial na agenda de prioridades sociais, a busca de satisfação das necessidades básicas e intangíveis das populações. Neste sentido, o desenvolvimento social é avaliado pela maneira como são satisfeitas as necessidades humanas fundamentais e é tanto maior, em nível global, quanto mais diverso e menos desigual. Desta forma, pode-se contribuir para a redução da pobreza e das desigualdades sociais e promover valores como a justiça social e eqüidade. O novo paradigma de desenvolvimento proposto pelo socioambientalismo deve promover e valorizar a diversidade cultural e a consolidação do processo democrático no país, com ampla participação social e na gestão ambiental. A emergência do socioambientalismo baseou-se no pressuposto de que as políticas públicas ambientais só funcionam com eficácia social e sustentabilidade política se incluíssem as comunidades locais e promovessem uma repartição socialmente justa e eqüitativa dos benefícios derivados da exploração dos recursos naturais.(Santilli, 2005) Sabe-se que no Brasil, a cultura dos povos tradicionais, indígenas e quilombolas fazem parte das nossas raízes e principalmente da nossa história, produzem conhecimentos e inovações nas artes, literatura e ciências. Manifesta-se por meio de desenhos, danças, lendas, músicas, técnicas de manejo dos recursos naturais, de caça e pesca, a utilização das propriedades medicinais e alimentícias das espécies existentes nas regiões onde vivem. Verifica-se que tais conhecimentos, considerados bens intangíveis, vem ganhando ‘atenção’ nas sociedades industriais, pelo potencial de exploração econômica, em destaque a área de biotecnologia. Porém não reconhecem os direitos associados desses povos. (Santilli, 2005)Estabelece-se, por meio da Constituição de 1988, as noções de titularidade coletiva de direitos, de uso e posse compartilhadas de recursos naturais e territórios, e de respeito às diferenças culturais. Porém, esses direitos são garantidos apenas para os povos indígenas e quilombolas, excluindo as comunidades locais, cujos territórios são considerados bens da União. Isso quer dizer que é deles, indígenas e quilombolas, o direito de usufruto exclusivo dos recursos naturais. Por isso, o acesso aos recursos genéticos desses territórios depende do consentimento prévio informado deles e da repartição justa de benefícios.Entende-se que maior desafio do socioambientalismo é conciliar as atividades produtivas necessárias para a sobrevivência de grupos sociais com a garantia de manutenção dos recursos naturais. Nesse sentido, entre as décadas de 1980 e 1990, inúmeras iniciativas levadas a cabo por organizações comunitárias de base local procuravam associar ações de desenvolvimento e de conservação ambiental.

6 A CARTA MAIOR E A GESTÃO PÚBLICA SÓCIO-AMBIENTAL

Antes de compreender qual o papel da Carta Maior na Gestão Democrática Participativa no Brasil, cabe tecer o conceito de Constituição. Conforme Lassale (1998), na obra “A essência de uma Constituição”, aponta que a Constituição é mais do que uma simples lei, e desta forma não sendo como as outras, pode-se denominá-la de ‘lei fundamental da nação’, uma forma ativa’ que exige que as demais leis “sejam o que realmente são”. Para este autor a Constituição é uma questão de poder, pois reflete ‘ fatores reais e efetivos de poder’. Portanto, a Constituição é o marco do denominado Estado Democrático de Direito. Trata-se da Lei Maior, garantidora dos direitos fundamentais e que organiza politicamente a nação. São as Constituições que estabelecem garantias fundamentais e organizam o Estado por meio de seus poderes.O Brasil prevê em sua Constituição de 1988, no art.1º, o direito de participação, assim como importantes elementos que abrem caminho para a gestão pública democrática participativa no Brasil. Observa-se com freqüência que as palavras ‘participação’, ‘democracia participativa’, ‘os novos direitos’ estão cada vez mais presentes no contexto da atualidade. Faz-se mister uma nova cidadania’. É uma outra mudança, para uma outra democracia. Uma democracia participativa com o respaldo da Constituição brasileira. Verifica-se a preocupação com a eficiência e a legitimidade. A Administração Pública atualmente, passa a adotar novos métodos de atuação voltados para a cultura do diálogo, de favorecer o trabalho da sociedade sobre ela mesma. Percebe-se que a administração depende da vitalidade das intervenções sociais e da dinâmica dos atores sociais. A Administração assume hoje a função de harmonizar o comportamento dos atores sociais, procurando ser mais transparente, distanciando-se dos modelos burocráticos puramente gerenciais e neoliberais.(Perez, 2004).Entende-se que a participação é um processo de construção lento e gradual e, portanto, não é algo fácil, sem obstáculos ou dificuldades. Fica bem claro que é uma conquista contínua. A sociedade sempre girou em torno do poder e a teoria da participação não pode ignorar esse fato, sendo um forte obstáculo. Nesse sentido, Demo (1999) complementa, os possíveis defensores da participação ao assumirem o ‘poder’ podem se tornar seus inimigos, pois ela conduz às críticas e a divisão de possíveis privilégios.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme o exposto, compreende-se que as políticas públicas sócio-ambientais exercem importante papel na construção desta gestão participativa, pois promovem a sustentabilidade social, além da sustentabilidade ambiental. Assim como os ‘novos’ direitos consagrados pelo socioambientalismo resgatam e reforçam a dimensão democrática participativa das políticas públicas. Conclui-se que o Estado Democrático de Direito tem a responsabilidade de cumprir a lei e de assegurar os direitos e garantias fundamentais. A partir do momento que os consagra como ‘valores primordiais’, o Estado torna-se o maior responsável pela efetivação desses direitos. Observa-se que não é suficiente que os direitos e garantias fundamentais estejam elencados nos mandamentos legais para modificar um Estado em Estado Democrático de Direito, mas sim atuar de maneira organizada e coordenadora dos cidadãos para exigir a concretização desses direitos aos poderes executivo, legislativo e judiciário. Percebe-se a dicotomia que existe entre o direito nos textos e o direito na prática da sociedade brasileira, pois ainda está cercada pelos anéis burocráticos e Segmentos tecnocráticos, frações das classes dominantes reproduzindo estruturas sociais discriminatórias. Isto se reflete na sociedade como um todo, em diversas áreas como no direito e na administração. A pesquisa realizada permitiu perceber que muitos problemas de caráter socioambiental afetam diretamente os cidadãos, porém no Brasil se tem a dificuldade de visualizar isto. As questões de cunho ambiental e seus conflitos, por exemplo, são na maioria das vezes designadas como assuntos para as elites políticas e econômicas. Porém, observa-se que as resoluções de questões ambientais solucionam juntamente os problemas sociais. O socioambientalismo permite desenvolver a sustentabilidade de maneira mais ampla possibilitando que num país denominado pobre, com diferenças sociais, desenvolva-se a sustentabilidade social, além da sustentabilidade ambiental, de espécies e ecossistemas. Verifica-se ainda um abismo entre as questões sociais e ambientais no Brasil. Necessita-se criar uma ponte para que possa unir estas duas questões fundamentais para a sustentabilidade social vista aqui de forma ampla. O socioambientalismo traz a tona esse desafio.Neste sentido, entende-se que a Gestão Pública modelada para o Estado no Brasil, segundo a Constituição Federal de 1988, pode ser entendida como a Gestão Pública Democrática Participativa, pois considera a Administração Pública pautada por critérios de legitimação democrático-participativa. É importante ressaltar que a Constituição Brasileira de 1988, representa um avanço no que tange ao modelo conceitual de estrutura Estatal, posto que também traça novos rumos à administração pública no país, de forma bem diferente das cartas magnas anteriores. O modelo de Gestão Pública Democrática e Participativa preconizado pela Constituição de 1988 reforça a natureza essencialmente coletiva dos novos direitos, dentre os quais destacam-se os direitos elaborados para os povos indígenas, para os quilombolas e a outras populações tradicionais.Percebe-se, que embora a Constituição de 1988 signifique um avanço na legislação e gestão administrativa pública sócio-ambiental do país, sabe-se que o caminho ainda é longo e sta em constante construção. Enquanto não houver conscientização política das e nas coletividades, não haverá cobrança de direitos. A população brasileira necessita desenvolver a cultura educacional para discernir entre deveres e direitos e principalmente participar da elaboração, execução e implantação das políticas públicas no Brasil. Muitos são os fatores que contribuem com a distância entre a lei, a ordem gerencial pública e a realidade do contexto sócio-ambiental brasileiro, posto que a politização é uma necessidade educativa e urgente.

REFERÊNCIAS

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1 comentários:

  • Anônimo says:
    10 de janeiro de 2012 às 13:15

    Para dimunir a criminalidade no Brasil, precisamos desenvolver programas sociais para acabar com as drogas,crak,cocaína,maconha e etc..,o drogado é um doente,o criminoso também é um doente, pois o crime é exteriorizado devido aos problemas /;pobreza,desigualdade e desemprego.Estes fatores colaboram para desenvolver o fato típico e antijuridico.lau

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